Mantivera no fim da adolescência
aquilo a que chamava simplesmente
o seu diário íntimo:
páginas manuscritas onde ardiam
rastilhos de mil sonhos que rasgavam
as mordaças da angústia social,
a timidez tão própria da idade.
Nessa caligrafia cuja cor
fora ainda a do sangue
colheu a energia necessária
pra atravessar como um sonâmbulo
o ordálio daquela juventude,
o seu incandescente calendário
de amizades vorazes, tão velozes
como os amores que julgava eternos
e outras feridas mal cauterizadas.
Hoje quase não volta a essas páginas:
estamos no século XXI
e em vez do diário de outros tempos
mantém agora um blog
onde todos os dias extravasa
recados, atitudes, confissões,
coisas no fundo tão inofensivas
como o fogo que outrora lhe acendia
as frases lancinantes
- embora hoje em dia quando escreve
tenha por um momento a ilusão
de que as suas palavras continuam
a propagar ainda o mesmo vírus,
e a alimentar, quam sabe, os mesmos
sonhos
sempre que alguém desconhecido as ler
como quem só assim então escutasse
um segredo na noite do mundo.
Mas, apesar de todo o entusiasmo
que o mantém acordado por noites sem fim,
ele adivinha que também virá
um dia a abandonar sem saber como
o seu actual vício solitário
e dentro de alguns anos, ao reler
as frases arquivadas no computador,
talvez tudo isso lhe pareça então
fruto de gestos tão adolescentes
como os que antigamente preenchiam
esses cadernos amarelecidos
e hoje sepultados para sempre
em esquecidas gavetas de outro século.
Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa
Esclarecimentos:
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Não, não ganho nenhuma comissão por divulgar poesia portuguesa.
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Não, não quero armar-me em intelectual, «postando» poesia ou excertos de qualquer outro tipo de literatura (prova: fui ao dicionário ver o significado de "ordálio": «prova jurídica chamada também Juízo de Deus, usada na Idade Média, e que consistia em o acusado se submeter a torturas físicas que provariam a sua inocência, caso não lhe causassem dano» - só uma questão: terá havido algum acusado considerado inocente?
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Não, não fiz nenhuma promessa de «postar» dia sim, dia não (ou dia sim, dia sim!) os poemas que leio.
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Sim, gosto de ler poesia (... e não só). E como os ouvidos nem sempre me permitem ouvir música (já raramente e só música conhecida), ou ouvir programas de televisão (abençoado país em que há legendas nas séries e nos filmes, em vez de dobragens!) ou até conversar ao mesmo tempo com mais do que uma pessoa,dedico à leitura muito do meu tempo. Sempre gostei de ler, agora agradeço por isso.Lamento apenas o preço exorbitante dos livros pois, para além de ler, também há prazer no acto de possuir um livro (abençoados família e amigos pelo empréstimo, obrigada às Bibliotecas Municipais - em tempos de crise há que deitar mãos a todos os recursos).
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Sim, muitas vezes encontro poemas, frases, provérbios, máximas que exprimem exactamente o que sinto no momento em que os leio. E alegra-me pensar que as emoções não são propriedade de ninguém e que já alguém sentiu aquilo que vivencio.
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Sim, gosto de partilhar os poemas e as frases que me agradam.
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Sim, tenho uma inveja imensa de quem escreve poesia assim! Gostaria de me exprimir deste modo, mas penso que só os talentosos e trabalhadores (talento sem trabalho não serve para nada e vice-versa!) o conseguem e não ouso sequer arriscar a ideia de que posso escrever poesia, pois não me considero nem com talento para tal nem suficientemente persistente.
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Não, nunca tive um diário nem quando adolescente.
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Sim, «extravaso» aqui aquilo que me percorre o sentir e o pensamento, aquilo que leio e me toca, as minhas dúvidas e tanto mais.
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Sim ou não? - não sei se virei a achar infantis estes «posts» e até a ideia de manter um blog, nem isso me preocupa agora. Para já, tem-me sabido bem poder fazê-lo e, com isso, tentar exorcizar alguns dos meus demónios diários desta «era pós-Cogan», para além de tentar divulgar informações sobre esta doença. O resto se verá!