A vida tem situações que nos obrigam a rever o que dissémos e pensámos acerca desta ou daquela pessoa, deste ou daquele assunto, levando-nos também a ponderar acerca das certezas que tínhamos, a duvidar de que o branco seja assim tão branco, a questionar se aquilo que vemos dos outros corresponde verdadeiramente àquilo que eles são ou se é apenas uma das suas facetas...
Quando alguém nos surpreende positivamente, mostrando de si uma parte que desconhecíamos, dando-se ao trabalho de chegar até nós, sem obrigação de o fazer, porque nada nos deve nem nós a ela, vale a pena pensar duas vezes nas nossas ideias feitas, nos retratos infiéis que pintámos dos outros...o que nos leva a outras questões, igualmente importantes: que imagem é que damos de nós aos outros, que interpretação farão eles daquilo que dizemos e fazemos ("que parte de mim fica no fogo ateado em volta, que parte?", José Jorge Letria)?
Assim como julgamos os outros e deles criamos a nossa verdade, o mesmo se passa com eles! Ou seja, será que andamos todos a brincar às escondidas com a verdade? E connosco próprios, o que acontece? Será que eu hoje me mostro assim porque sou assim mesmo, ou porque sei que é isso que esperam de mim, ou porque sei que isso agrada àqueles de quem gosto, ou porque não quero magoá-los e muito menos ferir de morte a eventual imagem positiva que possam ter de mim? Quando digo «ai!», será esse «ai» aquilo que transporto em mim, o «ai» que esperam de mim, o «ai» que quero soltar de mim?
Até que ponto as expectativas, os (pre)conceitos e os sentimentos dos outros e os nossos condicionam a nossa vida? Onde começamos e onde acabamos, no nosso olhar, no olhar dos outros, em todos eles? Seremos um só ou possuiremos diversas identidades, ou ainda, será a nossa identidade plural, um misto de facetas por vezes contraditórias, outras nem tanto? E qual é a nossa verdade no meio disso tudo? E a dos outros? Será a verdade uma só ou ela mudará consoante o seu «dono», o momento em que acontece e aqueles a quem se dá a ver? Se assim for, como pode a verdade ser verdadeira?
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Porque veríamos nós uma cousa se houvesse
outra?
Porque é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
e nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos XXIV
Nós, que ouvimos também com os olhos!
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